terça-feira, 29 de janeiro de 2008

A imagem que pesa 21 gramas. O filme que pesa em nossas vidas. O peso da poesia cinematográfica de Alessandro Iñarritu e a questão do ser



“O peso morto de uma tradição de maus costumes
impede-a de apreciar em seu justo mérito
as intenções mais esclarecidas”
‘O seio nu’
Ítalo Calvino-Palomar





O cinema como produtor da realidade como propõe Deleuze em seu livro Conversações ou simplesmente um aparato, um dispositivo, uma técnica? Pode o cinema ser mais que realidade ou ficção, instrumento e prática? "21 gramas" de Alessandro Gonzáles Iñarritu mostra que o cinema pode ser vida, pode falar de forma explícita sobre a finitude. Não que tantos outros filmes não conseguissem, mas nessa experiência do diretor de Amores Brutos, o cinema é despertado do seu sono e sonho tecnológico para dar voz a dimensão do ser. E dar voz ao ser é mais uma vez a necessidade do pensamento.
No caso do filme, a imagem é responsável em todas as suas colorações por um convite ao retorno à discussão sobre a posição do homem diante do acaso, diante da limitação por esse imposta, diante da própria metafísica e, sobretudo, diante do outro. Obviamente não só a imagem poderia nos levar a pensar nessa concepção, ou como afirma Baudrillard em um belo aforismo

O conceito é irrepresentável, mas a imagem é inexplicável. Entre eles há, portanto uma distância irreparável. E por isso a imagem vive da nostalgia do texto e o texto da nostalgia da imagem ( Jean Baudrillard. Cool memories IV, São Paulo, Estação Liberdade. 2002 p. 8) .


Assim esse texto pretende analisar as imagens do filme de Iñarritu, pensando o conceito da morte que o texto traz e que o dispositivo imagético consegue captar de forma magistral. Do vôo das pombas em um céu azul a morte amarelada e cheia de vida do personagem Paul, vivido por Sean Penn, a concepção de uma nova vida, com a coloração branca da bela cena de amor entre os personagens de Penn e Naomi Watts, entra em cena a imagem do ser. A pergunta sobre o quanto se perde, ou se ganha com a morte desse "21 gramas" faz da nostalgia que Baudrillard propõe um sentimento verdadeiramente bom, um sentimento que somente a saudade poderia explicar e que propõe a nostalgia que o texto e imagem desse filme nos traz.
Os planos e a câmera, por vezes vertiginosa, por vezes delicada tecem com a fotografia uma combinação que "Amores Brutos", primeiro filme de Iñarritu, já dava conta. Técnica e estética como faces de uma mesma moeda, para usar expressão recorrente. Esse filme não poderia ser esquecido, pois a mesma questão envolvendo o ser parece estar nele desenhada. Amores brutos, que tem no seu narrador fora da história e no seu veio político um diferencial em relação a "21 gramas," possui a mesma preocupação com o ser. Fato que o cinema não esquece, mas que em alguns momentos se distancia.
Em "21 gramas", o diretor encara com a mesma naturalidade o desafio de contar uma história através de imagens que mesclam poesia e técnica para mostrar e comprovar que estamos realmente jogados no mundo, lançados no mundo como o movimento proposto na filosofia heideggeriana. É também no acaso das imagens e nas imagens do acaso, que o filme dialoga com a filosofia.
As cores - para ser mais exato, os timbres - dão vida ao filme de Iñarritu. Desenham verdadeiras peças, fotos, telas que fixam os olhos do espectador na história que, com um misto de dor/desejo/esperança, nos leva a refletir um pouco mais sobre a existência. Função que Carrière brilhantemente recorta sobre a sétima arte.

O cinema nos arrasta para fora de nós mesmos, retardando o movimento dos pulmões e do coração. É difícil continuar falando de realidade quando o que estamos fazendo é penetrar num corpo que não é nosso, num cenário que não é nosso (Jean-Claude Carrière. A linguagem secreta do cinema, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1994, p. 75) .

Em "21 gramas", coração e pulmão são os órgãos que mais parecem simbolizar o que o filme se propõe. O ar e o amor são tratados com toda a dicotomia que merecem e os personagens Cristina e Jack, interpretados por Naomi Watts e Benicio Del Toro, emprestam seu fôlego e suas dores para dar brilho as imagens do filme. E se o corpo sem órgãos é realmente um limite como propõem Deleuze e Guattari se, a “ele não se chega, não se pode chegar, nunca se acaba de chegar” (Deleuze, Gilles. Guattari, Félix. Mil platôs Vol1, São Paulo, Editora 34, 2004, p. 9), vinte e um gramas parecem realmente ser liberados do corpo no exato momento da morte como gira a história desse instigante filme sobre a vida. A colocação de Carrière sobre a realidade que penetra em um outro corpo é redimensionada em alguns filmes contemporâneos que parecem mais reais que a própria realidade, seja pela vida que virou filme como aponta Neal Gabler, seja pela redefinição de realidade imposta pela virtualidade.
No filme, o peso das atitudes e as intenções precipitadas, motivadas pelo acaso dos acidentes impostos pela vida, ganham as explicações matemáticas de um professor, religiosas de um antigo perdido na vida - e temente em todos os sentido a Deus - e o desespero de uma mulher. As explicações tentam convencer-nos de que algo do inevitável poderia ter sido previsto, mas o destino que se cumpre também pode ser visto como crescimento. É aí que as imagens ganham sua força. Iñarriatu faz nascer das imagens uma nova concepção para os três mundos da diegese. Três histórias que se cruzam para imageticamente se encontrarem.
O filme que gira em função do acidente de carro que também faz três vítimas (um pai e suas duas filhas) salva a vida por alguns poucos meses do personagem de Sean Penn que recebe o coração do homem atropelado. Atropelos então começam a dar rumo às situações impostas pelas imagens captadas pelo diretor.
Para cada situação Iñarritu percebe uma câmera diferente, um olhar diferente. Do quadro pintado pelo rapaz que observa o acidente (em meio às folhas que cata e o som da frenagem do carro) à epifania da ida no veículo ensangüentado para o salvamento de uma vida que não quer ser salva, o filme parece tentar nos colocar juntos a intimidade da fragilidade da vida diante do acontecimento. Tal fragilidade é pintada com cores vibrantes. Com as nuances extremas que grandes pintores mostravam a vida e que poucos diretores de cinema conseguem ao lado de seus diretores de fotografia. Iñarritu consegue captar nas imagens colorações que dão clima em conjunto. Cores que remetem momento a momento, vale novamente lembrar, a problemática do ser.
Ao lado da cor, "21 gramas" coloca a angústia do homem no cerne da discussão. Faz isso com o belo texto do roteiro de Guillermo Arriaga. Faz o cinema distanciar-se da questão sobre seu aparato técnico e concentra-se no homem. No ser que reconhece sua finitude e que passa a conhecer o acaso. A preocupação do cinema de Iñarritu e de um grupo de pensadores-cineastas da atualidade nos leva a refletir sobre uma metamorfose que passa o cinema no mundo regido pelas novas tecnologias da comunicação e da informação ( esse próprio texto que publico aqui hoje, antigo em meus arquivos, renasce de outro filme que assisti por esses dias, o belíssimo Ballet mécanique (1924), de Fernand Léger. Um filme sobre a máquina que trata do ser, um filme experimental com um belo tema). Retomar, como propõe Burch a questão do tema de um filme não parece ser descabido em uma discussão como a que se tenta fazer nesse texto. Coloca o teórico:

Assim, se admitimos que o cinema, que já descobriu parte de suas potencialidades estruturais, deve considerá-las na escolha de seus temas, resta-nos perguntar “o que é um tema de filme”, ou, “o que é um bom tema de filme?” Ou ainda, “o que é um bom tema de filme hoje?” (James Dudley Andrew. As principais teorias do cinema – Uma introdução, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor 1989, p.49)

A epígrafe de Calvino - quando assisti "21 gramas" esse pintor de palavras não me saía da cabeça - que se apresentou como oportuna tenta dar conta da resposta às indagações de Noel Burch. Reler o homem e a moral como tenta "21 gramas" é observar com o senhor Palomar as intenções. Saber lidar com a intencionalidade nas decisões humanas como apresenta Iñarritu é compreender o peso morto que o homem parece estar se tornando, esquecendo o recado que ainda tenta o cinema lhe dar sobre a importância do ser no mundo que esquece dos acidentes, das cores, das imagens de verdade, em nome das infinitas reproduções, dos simulacros sem sentido da contemporaneidade. Falar do ser é falar de uma máquina...

Bibliografia
Andrew, James Dudley, As principais teorias do cinema – Uma introdução, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1989

Baudrillard, Jean, Cool memories IV, São Paulo, Estação Liberdade. 2002

Burch, Noel, Práxis do cinema, São Paulo, Perspectiva, 1992
Carrière, Jean-Claude A linguagem secreta do cinema, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1994

Gilles, Deleuze. Félix, Guattari, Mil platôs Vol1, São Paulo, Editora 34, 2004

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