segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

CARTA ABERTA A JOHN ASHBERY

"A memória é uma ilha de edição - um qualquer

passante diz, em um estilo nonchalant,

e imediatamente apaga a tecla e também

o sentido do que queria dizer.


Esgotado o eu, resta o espanto do mundo não ser

levado junto de roldão.

Onde e como armazenar a cor de cada instante?

Que traço reter da translúcida aurora?

Incinerar o lenho seco das amizades esturricadas?

O perfume, acaso, daquela rosa desbotada?




A vida não é uma tela e jamais adquire

o significado estrito

que se deseja imprimir nela.

Tampouco é uma estória em que cada minúcia

encerra uma moral.

Ela é recheada de locais de desova, presuntos,

liquidações, queimas de arquivos,divisões de capturas,

apagamentos de trechos, sumiços de originais,

grupos de extermínios e fotogramas estourados.

Que importa se as cinzas restam frias

ou se ainda ardem quentes

se não é selecionada urna alguma adequada,

seja grega seja bárbara,

para depositá-las?




Antes que o amanhã desabe aqui,

ainda hoje será esquecido

o que traz a marca d'água d'hoje



Hienas aguardam na tocaia da moita enquanto

os cães de fila do tempo fazem um arquipélago

de fiapos do terno da memória.

Ilhotas. Imagens em farrapos dos dias findos.

Numerosas crateras ozonais.

Os laços de família tornados lapsos.

Oco e cárie e cava e prótese,

assim o mundo vai parindo o defunto

de sua sinopse.

Sem nenhuma explosão final.




Nulla dies sine linea. Nenhum dia sem um traço.

Um, sem nome e com vontade aguada,

ergue este lema como uma barragem anti-entropia.




E os dias sucedem-se e é firmada a intenção

de transmudar todo veneno e ferrugem

em pedaço do paraíso. Ou vice-versa.

Ao prazer do bel-prazer,

como quem aperta um botão da mesa

de uma ilha de edição

e um deus irrompe afinal para resgatar o humano fardo."

Waly Salomão

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